Desobediência e uma brecha jurisprudencial inaugurada pelo Superior Tribunal de Justiça têm levado juízes por todo o Brasil a manter viva a prática da decretação de prisão por iniciativa própria, mesmo sem pedido do Ministério Público ou da autoridade policial
Esse tipo de atuação deixou de ser possível com a entrada em vigor do pacote “anticrime” (Lei 13.964/2019). A norma alterou o artigo 311 do Código de Processo Penal e retirou o termo “de ofício” ao tratar da decretação da prisão preventiva pelo juiz. Mas STF e STJ andam às margens da Lei de forma conveniente e conivente.
Tanto o Supremo Tribunal Federal como o Superior Tribunal de Justiça formaram jurisprudência no sentido de que o juiz não pode mais agir por intenção própria, mesmo se for para transformar uma prisão em flagrante em prisão preventiva.
Ainda assim, essa prática continua vigente. Em 2023, o STJ concedeu a ordem em Habeas Corpus ou recurso em HC 88 vezes para relaxar prisão decretada de ofício ou revogar preventiva convertida sem pedido do MP.
Os dados foram compilados pelo advogado e pesquisador David Metzker e indicam o rigor com que as instâncias ordinárias vêm tratando o tema. No período, houve decisões de soltura de suspeitos em 16 estados (AC, AM, MA, BA, TO, GO, DF, RN, PB, AL, SE, MG, RJ, SP, PR e RS).
Em 2024, a tendência é ainda mais forte. Até 30 de julho, o STJ já concedeu a ordem 54 vezes em casos de 12 estados diferentes (AM, RO, PI, RN, AL, GO, DF, MG, ES, SP, PR e RS).
Em 2023, a maior parte dos réus trancados por iniciativa do juiz tinha praticado furto, crime sem violência e de pena módica — foram 22 vezes, ao todo. Para esse ano, lidera a estatística o tráfico de drogas, com 12 casos.
Brecha jurisprudencial
Para além da desobediência pura e simples de juízes e tribunais, há uma brecha jurisprudencial inaugurada pela 6ª Turma do STJ que tem permitido a ocorrência de prisões, mesmo sem que elas tenham sido pedidas.
O precedente é o RHC 145.225, em que o colegiado entendeu, por maioria de votos, que o juiz pode escolher uma medida cautelar mais grave do que a requerida pelo Ministério Público, pela autoridade policial ou pelo ofendido.
Nesse caso, não se configura atuação de ofício do magistrado. Ou seja, se o MP concordar com o relaxamento de uma prisão em flagrante e pedir monitoramento eletrônico, o juiz pode discordar e converter a prisão em preventiva, sem qualquer ilegalidade.
“O que o STJ deu com uma mão, acabou tirando com a outra, dentro de uma perspectiva do sistema acusatório”, lamenta Saulo Carvalho David, coordenador do Núcleo de Defensorias Especializadas de Atuação nos Tribunais da Defensoria Pública de Goiás.
O precedente em que o STJ vedou a conversão da prisão em flagrante em prisão de ofício partiu da atuação da Defensoria Pública goiana, que agora vê os efeitos do esforço ruírem a partir dessa nova posição do tribunal.
O problema, conforme explica, é que o MP dificilmente concordará com o relaxamento da prisão de alguém sem a imposição de qualquer medida cautelar, mesmo que sejam as mais simples, como a de comparecimento mensal em juízo.
Com isso, o juiz tem a possibilidade de decretar a prisão em virtualmente todos os casos. É comum, inclusive, que os membros do MP peçam medidas cautelares e as deixem em aberto, a critério do próprio magistrado.
Juiz x MP x Réu
Na opinião do defensor público, as prisões de ofício persistem porque juízes entendem que estão no sistema de Justiça para combater a criminalidade, função que é dos órgãos de persecução penal — o Ministério Público e as polícias.
Se o MP, enquanto titular da ação penal, entende que, para garantia da ordem pública, conveniência da instrução e aplicação futura da lei penal não é necessária a prisão preventiva, caberia ao juiz concordar.
“Em vez disso, o juiz toma para si essa responsabilidade e entende que ele é o garantidor desses fatores. Ele assume essa função e aí o sistema fica troncho, para usar uma expressão comum em Goiás. Ou seja, fica manco, desvirtuado”, lamenta Saulo.
A posição da 6ª Turma do STJ, replicada nas instâncias ordinárias, não está pacificada. A 5ª Turma tem precedentes em que veda a conversão da prisão quando o MP pediu cautelares mais brandas — um exemplo é o HC 754.506.
Fonte: Danilo Vidal / Conjur